Poesia de rotina

Bruno Garofalo
5 min readNov 8, 2021

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Cinco e vinte. Já deu a hora, né?

Fui andando para o lado de fora enquanto ouvia cochichos dizendo “por que ele sai sempre no mesmo horário?”, “esse cara é metódico demais né”, “será que é o intestino regulado?”. Bom, não era muito uma questão de ser metódico, e sim de saber exatamente o que eu queria. A essa hora não costumava acontecer nada no trabalho, então não havia problema. Se por um acaso acontecesse, os outros que resolvessem.

Há uma certa citação de um filme famoso que diz algo como “Medicina, Direito, negócios e Engenharia são ocupações nobres para manter a vida. Mas poesia, beleza, romance e amor são razões para ficar vivo”. Dito isso, eu lhe pergunto: estou errado ao buscar a poesia na minha vida? Pois bem, não fiz essa pergunta a nenhum deles, pois sabia que não devia satisfação alguma.

Carregando apenas meu bloco de notas e uma caneta, eu saía todos os dias às cinco e vinte, ia para o mesmo estabelecimento de sempre e me sentava no mesmo lugar. Era uma lanchonete com um pequeno espaço externo. As mesas de madeira para duas ou quatro pessoas complementavam bem o paisagismo do jardim, do lado de fora, que era onde eu gostava de ficar. Do lado de dentro, tudo me parecia muito cinza e abafado, exceto por um ponto móvel cheio de vida e cor que às vezes estava lá, às vezes não.

Dessa vez, porém, um deles me seguiu. Pegou um café e um pão de queijo na lanchonete. Ao me ver e acenar com a cabeça, veio até mim e perguntou se podia se sentar do meu lado, segurando com cuidado o copo plástico com café fumegante. Reclamou um pouco do sabor, segundo ele amargo demais, mas continuou bebericando entre sopros.

Eu não fingia que gostava de café para me misturar mais ao ambiente. Sequer tinha fome naquele horário. Meu colega estava visivelmente matutando algo, e percebi pela expressão dele que suas opções estavam se afunilando cada vez mais. O bloco de notas estava fechado desde que ele chegara, e a caneta repousava em cima, com a ponta retraída. Eu já havia desistido de escrever qualquer coisa àquela altura do campeonato.

Quando o interrogatório (eventualmente) começou, quis brincar um pouco com ele. Mas percebi que não conseguiria ser enigmático por muito tempo.

— Quanto tempo você fica aqui, geralmente?

— Uma meia hora — respondi — , e aí eu volto para buscar minhas coisas e ir embora.

— E por que você gosta de escrever aqui, onde tem mais barulho? O silêncio do escritório te incomoda?

— Na verdade, determinados versos só podem ser escritos em determinados momentos do dia e em determinados lugares. A poesia mais pura é exigente — e olhei para o relógio. Estava quase na hora.

Pedi mentalmente que ele aguardasse e que não estragasse aquele momento que, apesar de se repetir quase todos os dias, era quase sagrado para mim. Até que começou a acontecer. Uma certa moça, provavelmente saindo de outro escritório nas redondezas, quase sempre aparecia naquele mesmo horário.

Ela acenou para mim. Acenei de volta, enquanto sentia um calor se espalhar pelo meu peito e pelo meu rosto, e torcia para que não fosse tão visível.

Talvez ela fosse tão metódica quanto eu, pois sempre se sentava no mesmo lugar, e pedia um suco de laranja e um sei-lá-o-quê para comer, que também não fazia muita diferença.

Mas o que eu gostava de verdade é que ela sempre andava com um livro debaixo do braço. Seu ritmo de leitura era bem acelerado, pois não era raro vê-la com um livro diferente por semana. Enquanto ela tomava o suco, aproveitava para ler mais algumas páginas. De onde eu estava, podia vê-la com diversas flores ao fundo, e tudo ficava ainda mais bonito.

Não demorou para que meu colega percebesse.

— O que você está olhando? Ah…

— Eu? Nada.

— Já falou com ela alguma vez?

Me rendi.

— Já, uma vez. Ela estava lendo um dos meus autores favoritos. Falei o começo da citação mais emblemática e ela completou.

— Mas que belo começo, hein. E vocês conversaram mais?

— Sim, mas não o suficiente. — nunca era. — Perguntei o nome dela, porque você sabe que eu gosto de saber os nomes das pessoas. Mas eu estava com um pouco de pressa. Acho que o cotidiano nunca vai me dar tempo suficiente.

— Por que você não fala com ela?

— Não entendo onde você quer chegar.

— Você está claramente sentindo algo aí!

— Não se confunda — e, bem, talvez ele não estivesse mesmo se confundindo. — Nós só nos conhecemos. Ela é bonita, com certeza você também acha isso. Mas eu não quero…

— O quê? Estragar tudo? Se for isso, lembre-se que o que você tem está mais para o nada do que para o tudo.

— Não é isso. Deixa pra lá, é complexo demais.

— Pode falar.

— É fascinante o suficiente observá-la viver a própria vida. Não quero interferir.

— Eu já vi esse filme. Então é com ela que você sonha.

Se aquilo não era meu xeque-mate, eu já não tinha mais peças para movimentar, de qualquer forma.

— Andou mexendo nas minhas coisas, é? — perguntei.

— Não. É que você mencionou que sonhava com uma moça bonita uma vez, e foi o suficiente pra eu nunca esquecer.

— Porque você é curioso.

— Porque eu sou curioso, isso. Agora que eu já sei, vou deixar vocês “a sós” aí. Vou passar lá na mesa dela e falar que você que vai pagar dessa vez.

— Tome cuidado com o que você faz. Vai acabar arrumando problema.

Mas ele não ouviu. De qualquer forma, alguns segundos depois, ele voltou para me dizer algo mais e derrubar de vez o rei do meu lado do tabuleiro.

— Ah, e antes que eu me esqueça: você não me engana. Dá pra ver o brilho nos seus olhos. É… Diferente.

Bem, aquilo eu não tinha como negar. Provavelmente era verdade que meus olhos brilhavam quando eu olhava para ela. E, se era mesmo verdade, até ela já teria percebido. Por algum motivo, eu gostava de como as coisas eram. Dos processos, das distâncias, dos ciclos, dos métodos, das repetições.

Mas algo naquele dia me fez perceber que talvez fosse hora de quebrar o ciclo.

Eu abri meu coração. Agora é hora de você abrir o seu. Curtiu? Então deixa suas palmas aí nesse texto se ele fez você refletir ou mesmo sentir alguma coisa. Vale até se te arrancou um sorriso. Se você quiser me acompanhar mais de perto e saber com exclusividade o que eu penso, você pode clicar no botão ao lado da minha foto para me seguir no Medium e sempre ficar de olho nas publicações.

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Bruno Garofalo

Levando poesia à vida comum. Textos às segundas, com (cada vez menos) raras exceções. Escrevo sobre o que quer que me inspire.