Terapia onírica #2

Bruno Garofalo
5 min readMay 10, 2022

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“Vamos começar?”

Eu ainda estava meio relutante, mas aceitei a proposta. Que ele fosse um charlatão, que fosse o pior; para mim não importava mais. Eu havia chegado no limiar do absurdo, prestes a cruzar para o outro lado, mas ainda impedido por cravar meus pés nas terras do ceticismo.

Ele me apontou o divã, no qual eu me deitei. Ele foi até a planta em destaque, com a placa na frente, e arrancou uma pequena folha. Eu o acompanhava com o canto do olho, e tive a impressão de que a folha cresceu de novo, como o rabo de uma lagartixa, mas infinitamente mais rápido. Um passo mais próximo do absurdo.

Morfeu voltou para onde eu estava, puxou uma poltrona e se deixou cair no assento, quase sem fazer barulho. Pediu que eu colocasse a folha na boca e a mastigasse. “E foram assim, meus últimos momentos ainda com os dois rins”, pensei, mas fiz o que ele pediu. Ele tocou minha testa, na região entre as duas sobrancelhas, mas um pouco acima. Subitamente, senti como se todos os músculos do meu corpo desligassem automaticamente. Uma rajada de vento atravessou o filtro dos sonhos, pendurado na janela, fazendo-o balançar. Tudo ficou escuro. E era como se eu estivesse…

Caindo.

Caindo num infinito escuro. Sem aceleração. Sem som. Sem enxergar qualquer coisa em volta. Mas, ainda assim, eu sabia que estava caindo.

Posso ter ficado ali durante uma eternidade inteira, ou apenas durante alguns segundos. Acho que nunca saberei. Minhas percepções de tempo e espaço foram roubadas, e eu já não sabia mais se estava submergindo no divã mais profundo do mundo, ou se estava… bem, morto.

Até que eu ouvi uma voz.

— Onde você está?

E, como se a palavra fosse a ordem divina, eu já não estava mais caindo. Eu estava sentado, num lugar estranhamente familiar, que eu não via há quase dez anos. Era um dia frio, e o silêncio — se é que podemos chamar assim — do ambiente era cortado por pessoas assoando os narizes e pelo som característico de lápis riscando o papel.

— Estou na minha sala de aula do ensino médio — respondi, ainda meio sem acreditar. — Fazendo uma prova. Sentado na última carteira do fundo, em diagonal com a porta. Onde eu sempre me sentava.

— Você sabe as respostas? — a voz perguntou novamente, agora num timbre mais familiar. O miserável do terapeuta estava mesmo se comunicando comigo. E eu estava respondendo, de dentro de um sonho. Mais um passo em direção ao absurdo. Linha cruzada. Agora, não havia mais volta.

— Não consigo nem ler as perguntas. Está tudo borrado. O relógio também.

— Tudo bem. Tem algum professor por aí?

— No momento, não. E por algum motivo todos os alunos estão concentrados fazendo a mesma prova. Só em sonho mesmo. Isso jamais aconteceria. Ei, espera.

— Pois não? Viu algo?

— Vi alguma coisa passar no corredor, do lado de fora. Mas não consigo me levantar pra ver o que é, nem desviar a cabeça. Só consigo ficar encarando essa folha de papel borrada e mastigar uma caneta.

— Você quer descobrir o que é que está lá fora? — perguntou. Se eu estivesse um pouco mais seguro, diria que em um tom ameaçador. Mas eu não tinha segurança alguma.

— Quero.

— Repita comigo: Ego sum dominus somniorum meorum.

Eu repeti, de uma forma meio tosca, e percebi que agora eu tinha liberdade de ação. Cacete, eu estava nas mãos de um bruxo. Nunca imaginei que fosse acontecer de novo.

— Agora, você pode fazer o que quiser. Continue me informando.

— Tudo bem. Estou me levantando, andando pela sala. Agora eu consigo ler as questões das provas e ver as horas, mas parece que ninguém se importa com o fato de que eu me levantei. Todos estão concentrados demais. Saí pela porta, e ainda é o colégio do qual me lembro. Tudo parece estar no lugar, exceto por… CACETE, TENHO CERTEZA QUE ESSA FLOR GIGANTE NO FIM DO CORREDOR NÃO ESTAVA LÁ ANTES.

— Que tipo de flor é?

— Do tipo que parece que vai me engolir se eu chegar perto demais. Estou indo na direção oposta. Tudo está estranhamente vazio, exceto pela minha sala de aula. Ei, eu acabei de atravessar uma parede. Isso é normal?

— Você vai aprender com o tempo, mas já deve ter percebido que consegue fazer algumas coisas que sua imaginação lhe permite. Tente colocar a mão no bolso e puxar um objeto plausível de lá.

— Consegui puxar um isqueiro. Isso me lembra de uma vez que eu estava no pátio e começou a chover álcool. Tentei incendiar a própria chuva para me vingar de pessoas que eu não gostava. Ei, eu estou sendo puxado. O que está acontecendo?

— Você está se desviando demais do caminho devido. Vai voltar para o “roteiro”.

— Que tipo de roteiro é esse que me tira de um colégio e me joga dentro de um carro? Nessa época eu nem sabia dirigir!

— Detalhes, por obséquio.

— Não sei que carro é, mas estou no banco do motorista. Dirigindo. Consigo sentir cada detalhe: as olhadelas no retrovisor, a pressão da embreagem, as marchas sendo trocadas enquanto o motor ronca de forma cada vez mais aguda. O vidro está aberto, e eu estou sentindo um vento gelado fazendo meus olhos arderem.

— Você consegue dirigir?

— Consigo.

Ele se calou por alguns instantes enquanto eu ia dirigindo. Por fim, com um estalo de dedos que reverberou por todos os cantos do meu mundo dos sonhos, ele disse:

— Pode voltar.

Eu voltei. Como se fosse sugado por um grande redemoinho, no fundo de uma pia gigantesca e esquisita, que me fazia descer rumo à consciência.

Quando eu abri os olhos, a primeira coisa que vi foi o filtro dos sonhos, agora parado.

Eu abri meu coração. Agora é hora de você abrir o seu. Curtiu? Então deixa suas palmas aí nesse texto se ele fez você refletir ou mesmo sentir alguma coisa. Vale até se te arrancou um sorriso. Se você quiser me acompanhar mais de perto e saber com exclusividade o que eu penso, você pode clicar no botão ao lado da minha foto para me seguir no Medium e sempre ficar de olho nas publicações.

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Bruno Garofalo

Levando poesia à vida comum. Textos às segundas, com (cada vez menos) raras exceções. Escrevo sobre o que quer que me inspire.